sábado, 11 de julho de 2009

torradas

do alto, ela só podia ver a janela. sozinha, mas sem solidão, ouvia os sons do sobrado. família reunida, torradas, requeijão, era tarde, havia crianças naquela casa. pensava na sua criança, que nem era tão dela. e imaginava como seria quando tivesse a sua, própria, tão sonhada. imaginava que quando fosse mãe, seria a melhor que já existiu. a natureza destrutiva, sempre tão cáustica e arrebatada de emoções parecia apaziguar toda vez que pressentia o instinto maternal que sussurrava dentro de si. crianças. ai, como o mundo é mau, como a vida é dura, como colocar mais um ser nesse sofrimento mundano? sua parte mais sagrada às vezes parecia um egoísmo. porque talvez seja muito tolo pensar que se pode criar um ser e dar a ele todas as condições de viver em paz. ah, mas sempre há a ilusão de poder controlar o universo pequenino em volta de um humano, imenso e vastíssimo dentro de si. será egoísmo querer dar vida a um ser que ainda não existe, trazer para o plano profano das ilusões inevitáveis o ser que se pretende ser o mais amado que já houve? não, ela já não podia pensar assim, viver era mais que o que ela tinha. tão jovem, e já necessitada de algo que desse continuidade à si mesma... filhos são eternamente filhos, e a eternidade fascina cada um que tem o pecado dentro de si. e talvez o pecado entre em cada um a partir do primeiro respirar, assim que se procura com a dor de inflar os pulmões virgens em busca da primeira lufada de ar. apagava cada cigarro pensando que a vida dela um dia seria plena, com crianças, lar imaculado e torradas. cada um tem os sonhos que merece.

Um comentário:

paulo calvet disse...

É engraçado... Nem sempre se deve ter Sonhos-Miles-Davis ou Sonhos-David-Lynch. Às vezes precisamos de Sonhos-Valsa, de uma simplicidade quase pueril, mesmo.

Este me pareceu um retrato de um Sonho-Valsa retratado com um charme acetinadamente egocêntrico, não é defeito isso, gostei.