quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

alvíssimas paredes próximas entre si, reluzentes ganchos metálicos razoavelmente altos, novíssimos punhos suspendendo a rede no ar, como um feitiço. o balançar da ocasião de subida naquilo o colocava em movimento. o ir e vir do pêndulo que se fazia de tecido e gente dava um nó na cabeça dele, um embrulho no estômago que o fazia considerar parar aquilo e pôr-se em terra firme: o chão, com simpáticas formiguinhas enfileiradas rumo a algum lugar secreto. mas a preguiça, que era tanta, o impedia de tomar qualquer atitude. e assim, o fastio progressivo teve seu espaço de crescimento. olhou a raiz da árvore, que se punha em frente a varanda. retorcida, gasta, velha, antiga. mais que tudo isso, vivida. a copa da árvore transmitia toda a vivacidade que é possível ser expressa, mas a raiz, que era seu sustentáculo, só mostrava decadência. a alegria das folhas claras quase transparentes quando novas, que farfalhavam suavemente por não estarem ressecadas, era baseada em tronco firme e rizos de podridão. até a grama perto da parte exposta da base da árvore não vingava - havia um círculo de esterilidade em torno daquele monumento natural, era como uma proteção do resto da natureza contra aquilo. a textura da parte mais baixa variava da do resto da planta, era como cortiça, era como isopor, era como morte. então, teve um lampejo que mostrou a pior parte de si mesmo, a parte que resistiu a todos os rituais de auto-lapidação. quando se deu conta que a árvore era ele e que o cheiro fétido vinha do próprio âmago, vomitou sem sair do lugar. foi um monstro em que se abriu um buraco e que jorrou podridão. ainda assim, o que o sustentava não foi expulso, só foi exposto [um aviso do infinito], como a raiz de uma árvore velha e imóvel.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

sabia que estava envelhecendo porque pensava de um jeito cada vez mais amargo. "pensamentos amarelados e duros como os de uma velha azeda", dizia a si mesma. a ideia dos anos impressos nas rugas na face a entristecia, porque não fazia muito tempo, ela era jovem e tinha sonhos. ou pelo menos ansiava ter sonhos que fossem vividos. agora, nem isso. não mais. não depois daquela vivência, daquele casamento maluco com o homem que mal conhecia. o enlace como fuga a aprisionou num mundo de obrigações e tarefas que a absorveu e então ela deixou de ter tempo para ser ela mesma. a essência não resistiu aos afazeres domésticos executados mecanicamente. ela se culpava por ser má administradora de um lar fadado à ser só mais um, comum, opaco. mas a culpa não era dela, não toda. a culpa era de todos que a deixaram dar um passo em falso, que não a impediram quando era possível. mas talvez, fosse isso mesmo, tudo um grande embuste com o objetivo de prendê-la àquela armadilha que se vendia como um modelo de união, afeto e carinho. carinho... grande balela! a coisa mais perto que chegava disso naquela convivência familiar era a falta que sentia do barulho das crianças pela casa, das chaves do marido ao chegar do serviço. não era alegria pela presença dos entes queridos, mas simplesmente o prazer cotidiano do ouvido acostumado aos ruídos da casa. não gostava de perceber isso, nem de sentir o alívio quando o esposo saía, e os filhos também. era tão bom ser só, ser livre, andar pela casa como uma alma penada em um plano invisível que só ela conhecia...! nesses momentos em que o espírito da essência roubada vagava pelos corredores em busca de algo com que se entreter, pensava em matar cada um dos seus algozes, pra que fosse sempre assim, gostoso, sereno, tranquilo, só dela. a casa só dela, o controle da televisão só dela, a geladeira só dela, o telefone só dela, o oxigênio só dela, tudo, tudo, tudo pertencendo a ela e só a ela. até que aquele povo voltava e ela nem se sentia invadida, sentia só que sua liberdade havia sido cerceada... daí a culpa por ter desejado que eles morresem a invadia, e ela ia percebendo que nem era vontade que eles morressem por suas mãos, nem mesmo que morressem, ela só queria que eles não mais existissem e a libertassem, assim, da prisão familiar que a cercava o tempo todo. a cada segundo de sentimento de culpa, amarelecia mais, ficava mais amarga e intolerante. com os familiares e consigo mesma. o ar de quem não se suporta gritava dos poros, reclamava a importância que não lhe era dada, e ela se afundava numa aura de indiferença que não era desprezo, era sofrimento. pensava na mãe, que se encaixava tão bem no papel de mãe-esposa-dona-de-casa, e surgia uma pequena revolta de não ser como a mãe era, e a mãe não ser como ela era. agradecia clandestinamente o fato dela estar morta, porque seria ainda mais difícil existir convivendo com uma matriarca que representava tão bem o ideal feminino, lembrava sempre das tias que se referiam à mãe dela como "a mulher que fazia faxina sem descascar o esmalte, que cozinhava sem desmatelar o penteado". ao recordar do falecimento da mãe, percebia que talvez estivesse velha há mais tempo do que podia se dar conta, talvez todos já soubessem da sua perda de frescor antes dela. se sentia traída de novo. bem que o marido podia traí-la, se envolver com uma mulherzinha dessas e deixá-la, libertá-la. mas não. ele se portava de uma maneira irrepreensível, e ela se roía de ódio por dentro, porque queria mais que tudo que algo destruísse aquela família, fazendo dela uma pessoa, não mais detentora de um papel social que ela escolhera sem nem saber. ai, se o tempo voltasse... o tempo, maldito, ali, em cada dobrinha minúscula que se desenhava na pele em volta da boca, dos olhos. o tempo circunda os olhos, os anos ficavam guardados ali, em torno de cristalinos que não viram tudo que tinham pra ver. "cadê a juventude, meu deus? porque não a estraguei, como deveria, quando podia?". só depois de toda uma vida, conseguia entender que viver era na verdade estragar a vida que se tem pela frente, do modo que dá na telha. sentia que deus, o tempo e todos em volta a traíam em segredo, mantendo-a cativa daquele inferno transfigurado em comercial de farinha de trigo. quando via o avental da mãe, sujo por causa de receitas que ela fazia com sorriso nos lábios, pensava em como alguém podia se prestar àquilo. e agora, sentada na mesa da cozinha, esperando a panela de pressão chiar, com a mão embaixo do queixo, com os dedos fedendo a alho, percebia que ela também se colocara em um papel coadjuvante, cozinhando coisas que não gostava para pessoas das quais não gostava, especialmente. gostava tanto da família como dos vizinhos, aquele amor doméstico de quem habita o mesmo espaço por muito tempo. um amor puramente ligado ao dever ético. nunca se apaixonou por um homem, quando foi pedida em casamento, aceitou porque ficou envaidecida, ficar noiva, antes de todas as amigas, que em vez de casarem foram conhecer o mundo. o mundo que dela era tão distante, uma vez que a janela da cozinha dava para um muro. o planeta no qual vivia era o que cabia entre muros. como uma penitenciária. mas penitência pelo quê, qual o crime? se perguntava como pudera fazer uma escolha tão equivocada, que a fez chegar até ali, mas não toda, porque só cruzaram a linha de chegada algumas partes, as que resistiram a monotonia de uma vida sem cor, uma vida de ritmo previsivel e enfastiante. sem nenhum acontecimento. sem expectativas. e nada da panela chiar...

domingo, 8 de fevereiro de 2009

gostava de sentir os pés no chão gelado. os dedos todos repuxavam levemente, ao contato com a superfície empoeirada e com o verniz dos tacos de madeira descascando. as narinas sentiam que tudo cheirava a verde, uma natureza etérea que entrava pelas janelas. porque dentro da casa, nada tinha vida. apesar disso, havia uma atmosfera de ação dentro daquele lugar, mesmo com os móveis de linhas retas, as cores todas pastéis, a sobriedade da decoração. uma samambaia artificial se mexia com a brisa que entrava - era o movimento da cena toda. porque ela nada fazia, era estátua naquele sofá em frente à parede. a única coisa que sentia eram os pés. até a respiração parecia suspensa, toda a existência havia sido suspensa. ela, agora, era só pé. toda pé, planta do pé. na cabeça, uma música que falava de céu, sol e mar. mas não ouvia a música e nem pensava nela, eram só dois versos que se repetiam sozinhos como um mantra. amargura em sua boca não mostrava os dentes, e eles nem eram de chumbo. o gosto azinabrado que envolvia sua língua era quase demência. pelo corpo, correntes de satisfação se desfaziam ao percorrer todas as veias coloridas, a pele toda pensava e sabia algo superior. naquele momento, em que pairava, fazia nada, só sentia e nem pensava, ela era plena. sua biografia poderia ter se resumido a um longo e extenso momento esse, que assim teria sido muito melhor e significativa. até que alguém resolveu passar café, e o cheiro do chá preto do pó de sementes moídas invadiu aquela instalação toda perfeita e houve desequilíbrio. ela piscou e pensou: quero café. e isso bastou. a partir de então, tudo que aconteceu foi só decadência. o auge daquela vida dela foram pés descalços num chão frio.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

o cheiro de erva doce, as cartas, tudo lembrava ele. nas horas em que estiveram juntos, em todos aqueles anos que já eram passado distante, não havia paixão, não havia ciúme. era tudo letargia, mas de um modo bom, quase em sépia. a relação inominável, o título indizível, as noites dormidas como adultos que não eram, mas tinham dentro deles, tudo, tudo, parecia tão distante como um sonho. bom? sem dúvidas. mas maduro demais, completo demais, denso demais, existencialista demais para seres com tão pouca idade nos ombros, com tanta inexperiência nas retinas... faltou o que só a maturidade mostra - que o que se chama de tédio ameno na realidade é paz. e a isso, só se dá valor quando já se passou por turbulências seriíssimas. almas velhas em existências jovens não querem descanso, querem explorar e tudo que isso implica. então, se está saudável demais, abre-se a porta para o estranho que desequilibrará o estado perfeito da bolha. é mais atraente o nocivo, o perigo, a desculpa para o passional. por isso o fim abrupto como um atropelo. por isso as palavras incoerentes sobre coisas simples. por isso foram viver mais, sofrer mais, quebrar cara e coração - para dar valor ao amor absoluto é preciso padecer. nisso, ela não se lamentou, porque a parcimônia só é felicidade depois de muitos bacanais.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

todos nós, bem pequenininhos.
do tamanho de clichês.
porque não importa quem seja,
sempre se encaixa em algum.