domingo, 15 de fevereiro de 2009

sabia que estava envelhecendo porque pensava de um jeito cada vez mais amargo. "pensamentos amarelados e duros como os de uma velha azeda", dizia a si mesma. a ideia dos anos impressos nas rugas na face a entristecia, porque não fazia muito tempo, ela era jovem e tinha sonhos. ou pelo menos ansiava ter sonhos que fossem vividos. agora, nem isso. não mais. não depois daquela vivência, daquele casamento maluco com o homem que mal conhecia. o enlace como fuga a aprisionou num mundo de obrigações e tarefas que a absorveu e então ela deixou de ter tempo para ser ela mesma. a essência não resistiu aos afazeres domésticos executados mecanicamente. ela se culpava por ser má administradora de um lar fadado à ser só mais um, comum, opaco. mas a culpa não era dela, não toda. a culpa era de todos que a deixaram dar um passo em falso, que não a impediram quando era possível. mas talvez, fosse isso mesmo, tudo um grande embuste com o objetivo de prendê-la àquela armadilha que se vendia como um modelo de união, afeto e carinho. carinho... grande balela! a coisa mais perto que chegava disso naquela convivência familiar era a falta que sentia do barulho das crianças pela casa, das chaves do marido ao chegar do serviço. não era alegria pela presença dos entes queridos, mas simplesmente o prazer cotidiano do ouvido acostumado aos ruídos da casa. não gostava de perceber isso, nem de sentir o alívio quando o esposo saía, e os filhos também. era tão bom ser só, ser livre, andar pela casa como uma alma penada em um plano invisível que só ela conhecia...! nesses momentos em que o espírito da essência roubada vagava pelos corredores em busca de algo com que se entreter, pensava em matar cada um dos seus algozes, pra que fosse sempre assim, gostoso, sereno, tranquilo, só dela. a casa só dela, o controle da televisão só dela, a geladeira só dela, o telefone só dela, o oxigênio só dela, tudo, tudo, tudo pertencendo a ela e só a ela. até que aquele povo voltava e ela nem se sentia invadida, sentia só que sua liberdade havia sido cerceada... daí a culpa por ter desejado que eles morresem a invadia, e ela ia percebendo que nem era vontade que eles morressem por suas mãos, nem mesmo que morressem, ela só queria que eles não mais existissem e a libertassem, assim, da prisão familiar que a cercava o tempo todo. a cada segundo de sentimento de culpa, amarelecia mais, ficava mais amarga e intolerante. com os familiares e consigo mesma. o ar de quem não se suporta gritava dos poros, reclamava a importância que não lhe era dada, e ela se afundava numa aura de indiferença que não era desprezo, era sofrimento. pensava na mãe, que se encaixava tão bem no papel de mãe-esposa-dona-de-casa, e surgia uma pequena revolta de não ser como a mãe era, e a mãe não ser como ela era. agradecia clandestinamente o fato dela estar morta, porque seria ainda mais difícil existir convivendo com uma matriarca que representava tão bem o ideal feminino, lembrava sempre das tias que se referiam à mãe dela como "a mulher que fazia faxina sem descascar o esmalte, que cozinhava sem desmatelar o penteado". ao recordar do falecimento da mãe, percebia que talvez estivesse velha há mais tempo do que podia se dar conta, talvez todos já soubessem da sua perda de frescor antes dela. se sentia traída de novo. bem que o marido podia traí-la, se envolver com uma mulherzinha dessas e deixá-la, libertá-la. mas não. ele se portava de uma maneira irrepreensível, e ela se roía de ódio por dentro, porque queria mais que tudo que algo destruísse aquela família, fazendo dela uma pessoa, não mais detentora de um papel social que ela escolhera sem nem saber. ai, se o tempo voltasse... o tempo, maldito, ali, em cada dobrinha minúscula que se desenhava na pele em volta da boca, dos olhos. o tempo circunda os olhos, os anos ficavam guardados ali, em torno de cristalinos que não viram tudo que tinham pra ver. "cadê a juventude, meu deus? porque não a estraguei, como deveria, quando podia?". só depois de toda uma vida, conseguia entender que viver era na verdade estragar a vida que se tem pela frente, do modo que dá na telha. sentia que deus, o tempo e todos em volta a traíam em segredo, mantendo-a cativa daquele inferno transfigurado em comercial de farinha de trigo. quando via o avental da mãe, sujo por causa de receitas que ela fazia com sorriso nos lábios, pensava em como alguém podia se prestar àquilo. e agora, sentada na mesa da cozinha, esperando a panela de pressão chiar, com a mão embaixo do queixo, com os dedos fedendo a alho, percebia que ela também se colocara em um papel coadjuvante, cozinhando coisas que não gostava para pessoas das quais não gostava, especialmente. gostava tanto da família como dos vizinhos, aquele amor doméstico de quem habita o mesmo espaço por muito tempo. um amor puramente ligado ao dever ético. nunca se apaixonou por um homem, quando foi pedida em casamento, aceitou porque ficou envaidecida, ficar noiva, antes de todas as amigas, que em vez de casarem foram conhecer o mundo. o mundo que dela era tão distante, uma vez que a janela da cozinha dava para um muro. o planeta no qual vivia era o que cabia entre muros. como uma penitenciária. mas penitência pelo quê, qual o crime? se perguntava como pudera fazer uma escolha tão equivocada, que a fez chegar até ali, mas não toda, porque só cruzaram a linha de chegada algumas partes, as que resistiram a monotonia de uma vida sem cor, uma vida de ritmo previsivel e enfastiante. sem nenhum acontecimento. sem expectativas. e nada da panela chiar...

4 comentários:

Anônimo disse...

Acho que não só poetas são fingidores de dores.
Prosadores também penam artisticamente.
Prosadores também sentem a dor do parto.



Prosadores têm que partir...

M. A. Cartágenes disse...

Bom conto.
Boa narrativa.
Boa ilustração de algo que acontece em demasia!
Quem sabe isso não foi o insight de um medo...

insens disse...

Nossa. Vc é uma bela contista. Mt bem construido a narrativa. Parabnes de verdade.

Vc tem msn?

Anônimo disse...

a beleza de um sofrimento
através de uma nostalgia
oculta em pensamentos silenciosos.
formidável

=)