domingo, 8 de fevereiro de 2009

gostava de sentir os pés no chão gelado. os dedos todos repuxavam levemente, ao contato com a superfície empoeirada e com o verniz dos tacos de madeira descascando. as narinas sentiam que tudo cheirava a verde, uma natureza etérea que entrava pelas janelas. porque dentro da casa, nada tinha vida. apesar disso, havia uma atmosfera de ação dentro daquele lugar, mesmo com os móveis de linhas retas, as cores todas pastéis, a sobriedade da decoração. uma samambaia artificial se mexia com a brisa que entrava - era o movimento da cena toda. porque ela nada fazia, era estátua naquele sofá em frente à parede. a única coisa que sentia eram os pés. até a respiração parecia suspensa, toda a existência havia sido suspensa. ela, agora, era só pé. toda pé, planta do pé. na cabeça, uma música que falava de céu, sol e mar. mas não ouvia a música e nem pensava nela, eram só dois versos que se repetiam sozinhos como um mantra. amargura em sua boca não mostrava os dentes, e eles nem eram de chumbo. o gosto azinabrado que envolvia sua língua era quase demência. pelo corpo, correntes de satisfação se desfaziam ao percorrer todas as veias coloridas, a pele toda pensava e sabia algo superior. naquele momento, em que pairava, fazia nada, só sentia e nem pensava, ela era plena. sua biografia poderia ter se resumido a um longo e extenso momento esse, que assim teria sido muito melhor e significativa. até que alguém resolveu passar café, e o cheiro do chá preto do pó de sementes moídas invadiu aquela instalação toda perfeita e houve desequilíbrio. ela piscou e pensou: quero café. e isso bastou. a partir de então, tudo que aconteceu foi só decadência. o auge daquela vida dela foram pés descalços num chão frio.

4 comentários:

insens disse...

Vc é instigante. Decididamente instigante. os vieses que te formam são instigantes. lendo, e sendo tão vojem, entrevemos o potencial. A lingugem. Bom te ler. Vc me instiga...

Laura Bourdiel disse...

Ótimo texto, passei a sentir todos os gostos descritos nele. Detalhes refinados. Concordo com o Cesar. Bom te ler...

¡besitos!

M. A. Cartágenes disse...

Mombojó tem razão nesse texto! E o café então... Mas nada melhor que capuccino, uma boa companhia, papo furado, risadas e uma chuva logo ali pra dar aquele ar de que tudo pode se remeter a um abraço longo e quente!

Bom texto.

Anônimo disse...

Trata-se de uma epifania?
Sim, pelo visto sim...

"O sangue não é azul, nem vermelho como o sol" - boa música.

Quanto ao texto, apresenta intertextualidades interessantes que só quem é de mercúrio entende.
=]