segunda-feira, 29 de dezembro de 2008
rasgo
Era dia, na exata metade das horas dele. Ela foi tomar banho. Ao retirar a roupa, o tecido ressecado por lavagens na máquina e secagens ao sol não resistiu, e partiu antes das duas alças, acima do busto. O pano caiu. Como no início de um espetáculo. Olhou para o chão, viu o vestido rasgado. O que fazer dele? Uma saia...? Panos de limpeza? Lixo? Caridade? Não, caridade não. Não se sentia bem em perceber que só conseguia doar o que já não servia para ela mesma. Se sentia mesquinha. E ela, ah, ela não era. Os outros, ao redor, sim, podiam ser. Mas ela nunca seria nem próximo de avarenta. Mas nunca conseguia se desfazer das coisas, que eram como partes de seu corpo, eram obviamente inseparáveis. Sempre disfarçou mesquinhez com mordomia e senso de valor dos objetos. Nada ia para o lixo. Nem papéis, que ela sempre se empenhava em usar até o último espaço em branco, e depois, ah, ainda havia o papel marché ou papel reciclado caseiro a se fazer. Além de praticamente econômico, ainda era terapêutico, o alívio de uma alma tempestuosa residia na delicadeza do trabalho com as mãos. Se retalhasse em vários paninhos para móveis, alguém de casa perguntaria sobre o acontecido com o vestido. E ela não desejava que alguém pensasse que ela não sabia cuidar de suas próprias coisas ou que algo esquisito a havia acontecido, que lhe rasgasse a roupa. Talvez a saia, sim, a saia seria um bom destino para aquele vestido que tantas vezes a acompanhou. Não que o apego residisse apenas nas recordações que ele trazia. Nas sensações experimentadas com cada um daqueles amontoados de tecidos sobrepostos e unidos, talvez. Mas pensava mesmo agora em como as roupas, quando rasgam, representam tão bem a existência dos seres que somos nós. As usamos para estabelecer barreiras entre nosso corpo e o mundo, o inimigo, o hostil... Para nos demonstrar diferentes - vê-se a pele e é a mesma, mas o vestuário de cada dia nos diferencia dos iguais... É como uma máscara usada para enfrentar o teatro do cotidiano, a comédia de vaidades e conflitos que tornamos real, dia após dia... A mais confortável face que pode-se lançar mão, porque é sutil apesar de explícita. Mas, quando uma roupa rasga, quando o vestido se parte nas duas alças... A máscara cai, e o pequeno desespero da nudez ante si mesmo evidencia que cada mentira magistralmente executada para sobreviver é mais que recurso vital, é escolha. Escolha que ela faz novamente, e bem mais consciente, quando retoma o vestido do chão do banheiro e decide com ele fazer uma saia, enquanto pensa quando será que conseguirá romper com as farsas, quando conseguirá não pegar algo ultrapassado e recolocar na sua vida? Quem, um dia, rompe o ciclo da vida de retalhos e reformas?
domingo, 14 de dezembro de 2008
quero ser raio luminoso, fogo de artifício. e quando explodir, que seja bonito e todos saiam para ver. que cabeças nas janelas dos apartamentos despontem e eu vire espetáculo, mesmo que efêmero, mesmo que muito barulho para tão pequena duração. quero ser acontecimento feliz em meio a nuvens que só fazem chorar. em meio ao céu noturno rosado de chuva, que tenta ser feliz mesmo sendo prenúncio de tempestade. e no final, quando só restar a fumaça - o rastro da minha passagem - que se diga: como foi alegre!
quinta-feira, 27 de novembro de 2008
terça-feira, 18 de novembro de 2008
-não está notando nada de diferente?
-... - um meneio negativo com a cabeça se uniu ao silêncio esclarecedor.
-cortei seu cabelo. enquanto você dormia. - o sorriso em sua face não era cínico, tampouco sarcástico. mas o prazer febril com que falava aquilo deixava transparecer algum sentimento desses que não conseguimos explicar, que tornam as palavras imprecisas e incapazes.
-o quê!?
um desconforto palpitante e latente se instalou nas faces das duas, que permaneceram se olhando e começando a entender o ódio que as unia ternamente através de todos aqueles anos. descobriam razões obscuras e acusadoras em tudo aquilo, e buscavam na memória todo e qualquer gesto que já as tivessem incomodado, e reviviam cada segundo de raivas pequenas. se dedicaram, nos momentos que seguiram aquele, ao culto aos incômodos acumulados e falsamente piedosos e respeitadores.
-... - um meneio negativo com a cabeça se uniu ao silêncio esclarecedor.
-cortei seu cabelo. enquanto você dormia. - o sorriso em sua face não era cínico, tampouco sarcástico. mas o prazer febril com que falava aquilo deixava transparecer algum sentimento desses que não conseguimos explicar, que tornam as palavras imprecisas e incapazes.
-o quê!?
um desconforto palpitante e latente se instalou nas faces das duas, que permaneceram se olhando e começando a entender o ódio que as unia ternamente através de todos aqueles anos. descobriam razões obscuras e acusadoras em tudo aquilo, e buscavam na memória todo e qualquer gesto que já as tivessem incomodado, e reviviam cada segundo de raivas pequenas. se dedicaram, nos momentos que seguiram aquele, ao culto aos incômodos acumulados e falsamente piedosos e respeitadores.
segunda-feira, 17 de novembro de 2008
mutilação
longe dos que eu queria perto.
desencontrada da essência.
furtada de pedaços da alma.
sem o que me fazia eu.
desencontrada da essência.
furtada de pedaços da alma.
sem o que me fazia eu.
domingo, 16 de novembro de 2008
controle?
tudo se punha em ordem, desordenadamente e sem que ela pudesse ter o controle real da situação. só lhe cabia esperar e sobreviver à organização voluptosa que a vida lhe impunha. não importava se ela já não queria conforto e acomodação, nada poderia parar aquele ciclo iniciado, de sobriedade e calmaria. era como se ela tivesse envelhecido algumas dúzias de anos e todos ao redor lhe escolhessem uma vida de quietude. existem pessoas que só procuram algumas coisas, e tudo na vida delas se encaixa ao analisar se há conforto suficiente para que tal situação possa ser considerada boa. essas são as pessoas que acreditam no óbvio dualismo, as que só veêm o bem e o mal. ela não era assim. mas também já não sabia como era, na realidade, antes daquilo tudo começar. ela já não se sabia de qualquer natureza que fosse. então, se deixava levar pelo fluxo da vida, que tramava com o destino formas de fazê-la despertar do sonho lúcido.
sábado, 15 de novembro de 2008
sexta-feira, 14 de novembro de 2008
partida
euforia passageira, apatia constante.tudo é tão fugaz que não se dá nem o trabalho de camuflar-se.a efemeridade escancara a crueldade da vida e aperta as janelas da alma.
bruno, volta?
bruno, volta?
quarta-feira, 12 de novembro de 2008
as notas se seguiam, dando a ela a impressão de morte iminente. mas não era toda morte iminente? sentia uma dor constante, como se cada célula sua devanecendo pudesse lhe atingir causando luto. suas angústias permanentes eram que lhe davam o prazer e o luxo da inconstância. para quê lutar por ser linear e fazer o que esperavam dela, se a dor seria a mesma, sempre? ela se programava por música, ou se remediava. não precisava refletir muito sobre suas sensações perante os acontecimentos, bastava analisar as músicas que escolhera para ouvir. ela não respirava música. respirar significa tornar íntimo algo que é necessário, mas reter uma só parte, o que lhe interessa, e despejar tudo que restou para fora, como em um vômito. a música se fundia à sua alma. era mais que necessidade. era desejo [conforto].
os dias passam e seguem para onde eu não sei.
os dias passam e seguem para onde eu não sei.
terça-feira, 11 de novembro de 2008
aliterado
"...não adiantam lutos derradeiros, nada que olhe para trás adianta. quero algo que olhe para frente, dessa vez alcançarei um futuro valioso, sem essas memórias servindo de fantasma e tropeço. eu quero parar de ser minha própria barreira, quero poder culpar alguém. já chega dessa auto-suficiência até para os pecados. eu sou meu deus e seguidor, em uma religião nada indulgente. a mentira é minha salvação. quero mais que essas coisas que vejo, não quero mais ficar confuso por não saber qual parte da minha vista não pode ser vista pelo resto do mundo. eu quero é mais. mais que essa vida..." - com esses pensamentos decisivos, seguiu.
Na sala, uma mulher o esperava. Aparência grave mas suficientemente gentil para que não fosse detestada de imediato. Os cabelos no rosto, evidenciavam algo de uma rebeldia que já fora bem mais que apenas insinuada. O esmalte descascado das unhas lhe emprestava um ar de desleixo que só os desocupados têm. Os olhos, claros mas não muito, fitavam a porta desde duas horas atrás. Quando a porta se abriu, o levantar dela foi quase instantâneo. Braços lutaram, costas arquearam-se e rostos se apertaram. Foi um abraço. O mais longo em, no mínimo, um ano. O desespero sempre remedia as corrupções do tempo. O tempo não lhes era favorável. Nunca havia sido.
Começou a falar para a mãe tudo que o angustiava, num ritmo que cadenciava como que para demonstrar a loucura à espreita. O olhar raivoso mostrava, na verdade, medo. Mais que isso: impotência. Jovem, com a ignorância dos que tudo dominam, ditava suas verdades contrapostas sob o olhar amável e preocupado da mulher que o havia amado desde a hora que o soubera seu. As frases enrolavam-se em vários quase-choros, que, sucessivos, presenteavam-lhe com uma aura infantil. Não era, mesmo, muito mais que uma criança indefesa desconsolada pela ausência repentina dos protetores e sob uma injustiça. Era só o mesmo que já havia sido há alguns anos: alguém assustado. Nunca deixara de ser, talvez nunca deixasse.
Por trás dos olhos de amêndoas amargas, pensamentos se queixavam do cheiro ruim que emanava dele. Perguntava-se por onde ele havia andado, em todo aquele tempo. Desde quando ele sentia aquilo? Em que momento adquiriu as mágoas e dores dos que já já existem há tempo bastante para perceber o sofrimento de viver? Quando crescera em tormento? Quando ficou, mais que nunca, semelhante a ela mesma? Em seus olhos nada disso se via: a passividade aparente era sua maior atividade.
Na sala, uma mulher o esperava. Aparência grave mas suficientemente gentil para que não fosse detestada de imediato. Os cabelos no rosto, evidenciavam algo de uma rebeldia que já fora bem mais que apenas insinuada. O esmalte descascado das unhas lhe emprestava um ar de desleixo que só os desocupados têm. Os olhos, claros mas não muito, fitavam a porta desde duas horas atrás. Quando a porta se abriu, o levantar dela foi quase instantâneo. Braços lutaram, costas arquearam-se e rostos se apertaram. Foi um abraço. O mais longo em, no mínimo, um ano. O desespero sempre remedia as corrupções do tempo. O tempo não lhes era favorável. Nunca havia sido.
Começou a falar para a mãe tudo que o angustiava, num ritmo que cadenciava como que para demonstrar a loucura à espreita. O olhar raivoso mostrava, na verdade, medo. Mais que isso: impotência. Jovem, com a ignorância dos que tudo dominam, ditava suas verdades contrapostas sob o olhar amável e preocupado da mulher que o havia amado desde a hora que o soubera seu. As frases enrolavam-se em vários quase-choros, que, sucessivos, presenteavam-lhe com uma aura infantil. Não era, mesmo, muito mais que uma criança indefesa desconsolada pela ausência repentina dos protetores e sob uma injustiça. Era só o mesmo que já havia sido há alguns anos: alguém assustado. Nunca deixara de ser, talvez nunca deixasse.
Por trás dos olhos de amêndoas amargas, pensamentos se queixavam do cheiro ruim que emanava dele. Perguntava-se por onde ele havia andado, em todo aquele tempo. Desde quando ele sentia aquilo? Em que momento adquiriu as mágoas e dores dos que já já existem há tempo bastante para perceber o sofrimento de viver? Quando crescera em tormento? Quando ficou, mais que nunca, semelhante a ela mesma? Em seus olhos nada disso se via: a passividade aparente era sua maior atividade.
quinta-feira, 30 de outubro de 2008
parto
"Porque na vida, algumas decisões têm de ser pensadas, medidas e calculadas. E outras têm que surgir de uma forma súbita e espôntanea. Tava querendo um blog já fazia um tempo. [...] Mas hoje, com tudo isso aqui na minha garganta, preso, mas querendo sair, me deixando inquieta e inconstante, mais que o habitual, eu resolvi fazer isso realmente. Quer dizer, eu não. Minhas angústias, que são órfãs e carentes. Elas são bem levadas também, que nem criança na sala quando chega visita pros pais. E, quando chega visita, elas saltam, fazem questão de se tornarem bem evidentes, me deixando encabulada e com vergonha. E quando não tem visita, elas vão bater de porta em porta, ou então ligam pra todos os telefones da agenda... Mas, como são órfãs, não têm ninguém para educá-las, e quando elas fazem traquinagem, elas não são postas de castigo, nem são manipuladas para que se sintam culpadas. Então, só sentem o alívio de mostrar pra todo mundo que não são como os outros pensam que são. E aí se acostumam a fazer essas vergonhas... É, minhas perturbações mandam em mim... E elas ficam aqui dentro, se nutrindo das minhas experiências, para depois me abandonar e seguir em direção à luz. Como em um parto. [...]"
texto escrito há muitos anos, no fim da minha infância. é de um tempo em que eu ainda escrevia com maiúsculas... em cada blog que começo, esse é sempre o primeiro post, para dar sorte. é a pulseirinha vermelha no pulso esquerdo de cada um desses meus filhos. as minhas superstições são pouco místicas, são mais obsessivas compulsivas mesmo...
texto escrito há muitos anos, no fim da minha infância. é de um tempo em que eu ainda escrevia com maiúsculas... em cada blog que começo, esse é sempre o primeiro post, para dar sorte. é a pulseirinha vermelha no pulso esquerdo de cada um desses meus filhos. as minhas superstições são pouco místicas, são mais obsessivas compulsivas mesmo...
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